01 fevereiro, 2012

A Carta da Corcunda para o Serralheiro (reproduzimos na integra a «carta» que Fernando Pessoa dizem que escreveu como Maria José.)



Senhor Antonio:
O senhor nunca ha de ver esta carta, nem eu hei de ver segunda vez porque estou tuberculosa,
mas eu quero escrever-lhe ainda que o senhor o não saiba, porque se não escrevo abafo.
O senhor não sabe  quem eu sou, isto é, sabe mas não sabe a valer. Tem-me visto á janella
quando o senhor passa para a officina e eu olho para si, porque o espero a chegar, e sei a hora
que o senhor chega. Deve sempre ter pensado sem importancia na corcunda do primeiro andar da
casa amarella, mas eu não penso senão em si. Sei que o senhor tem uma amante, que é aquella
rapariga loura alta e bonita; eu tenho inveja d’ella mas não tenho ciumes de si porque não tenho
direito a ter nada, nem mesmo ciumes. Eu gosto de si porque gosto de si, e tenho pena de não ser
outra mulher, com outro corpo e outro feitio, e poder ir á rua e fallar comsigo ainda que o senhor
me não desse razão de nada, mas eu estimava conhecel-o de fallar.
O senhor é tudo quanto me tem valido na minha doença e eu estou-lhe agradecida sem que o
senhor o saiba. Eu nunca poderia ter ninguem que gostasse de mim como se gosta das pessoas
que teem o corpo de que se pode gostar, mas eu tenho o direito de gostar sem que gostem de
mim, e tambem tenho o direito de chorar, que não se negue a ninguem.
Eu gostava de morrer depois de lhe fallar a primeira vez mas nunca terei coragem nem maneiras
de lhe fallar. Gostava que o senhor soubesse que eu gostava muito de si, mas tenho medo que se
o senhor soubesse não se importasse nada, e eu tenho pena já de saber que isso é
absolutamente certo antes de saber qualquer coisa, que eu mesmo não vou procurar saber.
Eu sou corcunda desde a nascença e sempre riram de mim. Dizem que todas as corcundas são
más, mas eu nunca quiz mal a ninguem. Alem d’isso sou doente, e nunca tive alma, por causa da
doença, para ter grandes raivas. Tenho dezanove annos e nunca sei para que é que cheguei a ter
tanta edade, e doente, e sem ninguém que tivesse pena de mim a não ser por eu ser corcunda,
que é o menos, porque é a alma que me doe, e não o corpo, pois a corcunda não faz dor.
Eu até gostava de saber como é a sua vida com a sua amiga, porque como é uma vida que eu
nunca posso ter – e agora menos que nem vida tenho – gostava de saber tudo.
Desculpe escrever-lhe tanto sem o conhecer, mas o senhor não vae ler isto, e mesmo que lesse
nem sabia que era consigo e não ligava importancia em qualquer caso, mas gostaria que
pensasse que é triste ser marreca e viver sempre só á janella, e ter mãe e irmãs que gostam da
gente mas sem ninguem que goste de nós, porque tudo isso é natural e é a familia, e o que
faltava é que nem isso houvesse para uma boneca com os ossos ás avessas como eu sou, como
eu já ouvi dizer.
Houve um dia que o senhor vinha para a officina e um gato se pegou á pancada com um cão aqui
defronte da janella, e todos estivemos a ver, e o senhor parou, na esquina do barbeiro, e depois olhou para mim para a janella, e viu-me a rir e riu tambem para mim, e essa foi a unica vez que o
senhor esteve a sós commigo, por assim dizer, que isso nunca poderia eu esperar.
Tantas vezes, o senhor não imagina, andei á espera que houvesse outra coisa qualquer na rua
quando o senhor passasse e eu pudesse outra vez ver o senhor a ver e talvez olhasse para mim e
eu pudesse olhar para si e ver os seus olhos a direito para os meus.
Mas eu não consigo nada do que quero, nasci já assim, e até tenho que estar em cima de um
estrado para poder estar á altura da janella. Passo todo o dia a ver illustrações e revistas de
modas que emprestam á minha mãe, e estou sempre a pensar noutra coisa, tanto que quando me
perguntam como era aquella saia ou quem é que estava no retrato onde está a Rainha de
Inglaterra, eu ás vezes me envergonha de não saber, porque estive a ver coisas que não podem
ser e que eu não posso deixar que me entrem na cabeça e me dêem alegria para eu depois ainda
por cima ter vontade de chorar.
Depois todos me desculpam, e acham que sou tonta, mas não me julgam parva, porque ninguem
julga isso, e eu chego a não ter pena da desculpa, porque assim não tenho que explicar porque é
que estive distrahida.
Ainda me lembro d’aquelle dia que o senhor passou aqui ao Domingo com o fato azul claro. Não
era azul claro, mas era uma sarja muito clara para o azul escuro que costuma ser. O senhor ia
que parecia o proprio dia que estava lindo e eu nunca tive tanta inveja de toda a gente como
nesse dia. Mas não tive inveja da sua amiga, a não ser que o senhor não fosse ter com ella mas
com outra qualquer, porque eu não pensei senão em si, e foi por isso que invejei toda a gente, o
que não percebo mas o certo é que é verdade.
Não é por ser corcunda que estou aqui sempre á janella, mas é que ainda por cima tenho uma
especie de rheumatismo nas pernas e não me posso mexer, e assim estou como se fosse
paralytica, o que é uma maçada para todos cá em casa e eu sinto ter que ser toda a gente a
aturar-me e a ter que me acceitar que o senhor não imagina.
Eu ás vezes dá-me um desespero como se me pudesse atirar da janella abaixo, mas eu que
figura teria a cahir da janella? Até quem me visse cahir ria e a janella é tam baixa que eu nem
morreria, mas era ainda mais maçada para os outros, e estou a ver-me na rua como uma macaca,
com as pernas á vela e a corcunda a sahir pela blusa e toda a gente a querer ter pena mas a ter
nojo ao mesmo tempo ou a rir se calhasse, porque a gente é como é não como tinha vontade de
ser - e enfim porque lhe estou eu a escrever se lhe não vou mandar esta carta?
O senhor que anda de um lado para o outro não sabe qual é o peso de a gente não ser ninguem.
Eu estou á janella todo o dia e vejo toda a gente passar de um lado para o outro e ter um modo de
vida e gosar e fallar a esta e áquella, e parece que sou um vaso com uma planta murcha que ficou
aqui á janella por tirar de lá.
O senhor não pode imaginar, porque é bonito e tem saude o que é a gente ter nascido e não ser
gente, e ver nos jornaes o que as pessoas fazem, e uns são ministros e andam de um lado para o
outro a visitar todas as terras, e outros estão na vida da sociedade e casam e teem baptizados e estão doentes e fazem-lhe operações os mesmos medicos, e outros partem para as suas casas
aqui e alli, e outros roubam e outros queixam-se, e uns fazem grandes crimes e ha artigos
assignados por outros e retratos e annuncios com  os nomes dos homens que vão comprar as
modas ao estrangeiro, tudo isto o senhor não imagina o que é para quem é um trapo como eu que
ficou no parapeito da janella de limpar o signal redondo dos vasos quando a pintura é fresca por
causa da agua.
Se o senhor soubesse isto tudo era capaz de de vez em quando me dizer adeus da rua, e eu
gostava de se lhe poder pedir isso, porque o senhor não imagina, eu talvez não vivesse mais, que
pouco é o que tenho de viver, mas eu ia mais feliz lá para onde se vae se soubesse que o senhor
me dava os bons dias por acaso.
A Margarida costureira diz que lhe fallou uma vez, que lhe fallou torto porque o senhor se metteu
com ella na rua aqui ao lado, e essa vez é que eu senti inveja a valer, eu confesso porque não lhe
quero mentir, senti inveja porque metter-se alguém comnosco é a gente ser mulher, e eu não sou
mulher nem homem, porque ninguém acha que eu sou nada a não ser uma especie de gente que
está para aqui a encher o vão da janella e a aborrecer tudo que me vê, valha me Deus.
O Antonio (é o mesmo nome que o seu, mas que differença!) o Antonio da officina de automoveis
disse uma vez a meu pae que toda a gente deve produzir qualquer coisa, que sem isso não ha
direito a viver, que quem não trabalha não come e não ha direito a haver quem não trabalhe. E eu
pensei que faço eu no mundo, que não faço nada senão estar á janella com toda a gente a mexerse de um lado para o outro, sem ser paralytica, e tendo maneira de encontrar as pessoas de quem
gosta, e depois poderia produzir á vontade o que fosse preciso porque tinha gosto para isso.
Adeus senhor Antonio, eu não tenho senão dias de vida e escrevo esta carta só para a guardar no
peito como se fosse uma carta que o senhor me escrevesse em vez de eu a escrever a si. Eu
desejo que o senhor tenha todas as felicidades que possa desejar e que nunca saiba de mim para
não rir porque eu sei que não posso esperar mais.
Eu amo o senhor com toda a minha alma e toda a minha vida.
Ahi tem e estou a chorar.
Maria José